O tema pobreza já foi abordado através de vários pontos de vista ao longo da história do cinema. Muitas delas são visões românticas e que servem como mero plano de fundo para uma história pouco comprometida com a realidade. Poucos pontos de vista são ousados, destacando talvez o trabalho de Fernando Meirelles com seu maravilhoso “Cidade de Deus”, o principal comparativo com o filme que iremos analisar.
Os diretores de ambos os filmes se expressaram diante dessa comparação, já que suas visões são retratos dos mundos mais baixos e miseráveis da cidade. Mesmo com enfoques similares, as obras possuem um caráter totalmente diferente. Uma é o resultado fiel de uma determinada época e a outra, uma história de amor que narra, ao fundo, a evolução de uma cidade.
Nesse sentido, "Quem Quer Ser um Milionário" nos permite imergir na realidade de Mumbai, a cidade mais povoada da Índia e a segunda mais populosa do mundo, com quase 13 milhões de habitantes. Esse filme, através de uma visão crua e realista mostra uma sociedade terrível, mal-cheirosa e cruel onde se desenrola uma luta constante pela sobrevivência. Para isso o diretor se afasta totalmente de uma visão turística e superficial para entrar completamente em suas ruas mais miseráveis. A maioria dos seus personagens são interpretados pelos próprios habitantes do lugar e chegam a tela do cinema com suas personalidades antes de seguirem um roteiro pré-fabricado.
Mumbai é a representação de qualquer cidade em desenvolvimento do mundo. Cheia de vitalidade graças ao grande número de habitantes, cujas metas são alcançar o progresso e a "modernidade" que hoje em dia possuem os países de primeiro mundo. Através da crescente indústria portuária e a introdução do capital estrangeiro a cidade cresce a largos passos. Mas o desenvolvimento não é equitativo e em vez da pobreza desaparecer, ela só aumenta.
Como parte do sistema neoliberal, a divisão do capital se concentra somente em poucas mãos. As classes altas se tornam cada vez mais influentes e poderosas enquanto que oferecem serviços que pouca gente pode usufruir devido aos seus baixos salários. Os bairros antigos desapareceram a medida que grandes edifícios habitacionais foram criados para acomodar a população, mas poucos podem pagá-los e portanto, novos bairros de miséria aparecem nas novas periferias da cidade.
Esse é um processo que se repete em todos os modelos de fazer cidade no terceiro mundo. A concentração da riqueza em mãos de uns poucos não fez mais do que aumentar a diferença entre os ricos e pobres, piorando suas condições de vida. Esse processo pode ser observado tanto no plano de fundo do filme como nas próprias ações dos seus protagonistas. Eles, seres provenientes dos estratos mais baixos, não podem ter trabalhos dignos e honestos devido a sua falta de preparação. Dedicam-se, então, aos roubos durante sua infância e quando crescem, tomam caminhos tão diferentes quanto contraditórios.
Completamente arrancado da sociedade, um deles se torna parte da máfia da cidade. Sem escrúpulos, torna-se um tirano em busca de riqueza que de outra maneira nunca conseguiria. O outro personagem, de mesma educação mas de coração firme, procura um emprego digno mas pela sua condição social acaba segregado como um mero servente.
Ambos representam e acompanham a todo o momento a evolução da cidade. Carregam mensagens diferentes e opostas, mas os dois são vítimas de um sistema que concentra o capital nas mãos de muito poucos. São atores, como nós, de um jogo injusto cujas bases são perturbadoras. Por isso, depois de tudo...Quem não quer ser um milionário?
CENAS CHAVES
1. A Invasão como Expressão da Miséria
Sem espaços, as crianças invadem o aeroporto para brincar. Isolados da cidade, sua única forma de expressão é incomodar a vida do resto da população.
2. O Anti-espaço da Cidade
São comunidades deslocadas socialmente, longe do olhar comum. Encontram refúgio e delimitação na miséria da cidade, em redutos e áreas impensáveis para o habitar.
3. A Arquitetura da Exclusão
Para se proteger do exterior, as moradias precárias se aglomeram em traçados caóticos, labirínticos e estreitos que somente os habitantes sabem decifrar.
4. Um Ambiente sem Saúde
Sem recursos, o bairros pobres criam latrinas ao ar livre que não somente contaminam o meio ambiente mas também se tornam um foco de doenças para a população.
5. Um Ambiente Superpopuloso
Mumbai é a maior cidade da Índia. A população se aglomera sobretudo nas favelas, onde se acabam as oportunidades e o espaço para crescer.
6. Visão Crua de um País em Desenvolvimento
O diretor opta por descartar uma visão turística, para mostrar o verdadeiro rosto de uma cidade superpovoada, globalizada e cheia de vitalidade em busca de crescimento.
7. As Violentas Revoltas Sociais
Como forma de controle, o governo segrega a vida das pessoas de acordo com sua religião, mas a intolerância cresce e acontecem revoltas violentas entre os diferentes bairros.
8. O Negócio da Exploração Infantil
Aproveitando-se da inocência das crianças, as máfias locais adotam os órfãos das ruas. Roubam sua inocência e os organizam para pedir esmola através da sua imagem de miséria.
9. A Vitalidade de um Mundo sem Oportunidades
A pobreza dos jovens não os conduz ao delito, mas isso se tornou parte integrante do seu modo de sobrevivência. Sem educação ou oportunidades é a única realidade que conhecem.
10. Uma Cidade em Transformação
Graças ao desenvolvimento econômico, os antigos bairros desaparecem. No horizonte são erguidos novos complexos habitacionais em busca de uma nova ordem de cidade.
11. A Imagem Chave do Trem
A rede ferroviária é o principal transporte das pessoas no país. Ela permite aos protagonistas viajar por todas as regiões e é o símbolo que lhes permite chegar a idade adulta.
12. O Crescimento Desigual entre a Sociedade
Enquanto a cidade cresce, somente as pessoas com dinheiro podem pagar uma nova moradia, enriquecendo o setor imobiliário liderado pela máfia, que constrói luxuosas mansões.
PERFIL DO DIRETOR
Diretor e produtor de cinema nascido no dia 20 de outubro de 1956 em Manchester, Inglaterra. Estudou nas Universidades de Thornliegh Salesian College de Bolton e de Gales em Bangor. Quis, primeiramente, ser sacerdote, mas abandonou essa ideia para atuar no teatro, chegando a participar na Royal Shakespeare Company.
Antes de dirigir filmes, se ocupou de produções televisivas e diversos telefilmes. Foi em meados dos anos noventa que debutou no cinema com Shallow Grave (1995). Mas foi seu próximo filme Trainspotting que obteve grande repercussão e tornou conhecido o seu nome.
Trabalhou em diversos projetos onde se destacam A Praia (2000), o aterrorizante 20 dias depois (2002) e Sunshine (2007) história de ficção científica apocalíptica.
O projeto de Quem Quer Ser um Milionário chegou à ele quando o roteiro ainda estava em projeto. Ficou fascinado pela história, não somente de amor mas também da evolução da cidade. Para sua realização, as cenas foram gravadas nas verdadeiras favelas da Índia e como as próprias crianças da localidade. Muitas de suas atuações são totalmente espontâneas. O filme foi nominado a 10 categorias do Oscar, vencendo em 8 delas, incluindo melhor diretor, melhor filme e melhor fotografia.
FICHA TÉCNICA
Data de estreia: 12 de Novembro 2008
Duração: 120 minutos
Gênero: Drama
Diretor: Danny Boyle
Roteiro: Simon Beaufoy
Fotografia: Anthony Dod Mantle
SINOPSE
Jamal Malik, um jovem órfão que vive em uma favela em Mumbai decide se inscrever para a versão Hindu do famoso programa "Quem quer ser um milionário?". Diante da surpresa de todos Jamal responde corretamente a todas as perguntas, mas quando está a ponto de responder a última pergunta, a polícia o prende e é levado para um interrogatório acusado de estar trapaceando.
Jamal deverá explicar porque conhecia todas as respostas, relatando diferentes momentos da sua vida, começando pela sua infância tortuosa nas áreas pobres da cidade e revelando a verdadeira razão de sua participação no concurso.